O tema acabou surgindo novamente na comunidade Liberalismo (verdadeiro) e gerou uma rápida, mas acalorada discussão.
O tema é extenso, mas pretendo desenvolver tópicos rápidos para falar dos aspectos mais conhecidos e discutidos. Sinceramente e pessoalmente, é um tema que me aborrece um pouco: há um misto de má-vontade, preconceito e um progressismo irracional do outro lado. Não direi que não existem bons argumentos racionais para pôr em xeque a ilegalidade do aborto, mas dificilmente são encontrados. O que se tem, em regra, é uma birra, motivos passionais, pessoais e muita, mas muita desinformãção e presunção - esta, covardemente, sempre contra o feto.
O feto é uma vida humana?
É a questão fundamental e primeira do aborto. Só tem direito aquele que é vivo e se chega à certa e inegável conclusão de que o feto não é vivo, não se trata de discutir se o aborto é ético ou não, pois seu ato não constituiria uma violência contra a liberdade, propriedade ou vida de outrem.
A resposta muito simples, muito humilde e muito sincera é: não há conclusão.
Não há conclusão não por se tratar de um feto, mas por ser impossível afirmar, hoje, como caracterizamos uma vida humana. Critérios filosóficos e científicos podem ser sugeridos, mas nenhum sujeito com senso de responsabilidade e na busca da verdade seria arrogante o suficiente para afirmar, com toda certeza, o que é a vida humana. Um doente terminal possui tanta natureza humana quanto o sujeito saudável? Um paciente em estado vegetativo merece o direito à vida e à propriedade? Um sujeito disforme, deficiente mental e incapaz tem tanta dignidade quanto o resto de nós?
É inquestionável a natureza humana do feto, desde a sua concepção, pois este possui uma carga genética compatível com os outros homo sapiens. Quanto à sua vida, por ser impossível atestar com segurança se existe ou não e se é humana ou não, devemos conceder-lhe o benefício da dúvida.
Afinal, quem seria estúpido o suficiente para dar um tiro às cegas enquanto sabe que tem consideráveis chances de matar alguém?
A mulher tem direito ao próprio corpo, ainda que esteja grávida?
Obviamente, a mulher jamais deixará de ser proprietária de seu corpo. Ela é livre para fazer dele o que quiser. A liberdade da grávida, entretanto, cessa quando todo e qualquer ato seu vá de encontro com a integridade do feto. O feto não faz parte do corpo da mulher, mas é, em sua estrutura essencial, como condição sem a qual não existiria (conditio sine qua non), um corpo dependente.
Ser dependente é um atestado de não-humanidade? Não possuir autonomia significa não ter direitos? Obviamente não, pois sabemos que crianças até uma idade considerável não são autônomas; diversas deficiências físicas, biológicas e neurológicas também incapacitam plenamente um sujeito, donde não se infere que este não possui direitos, ou não é humano; idosos em número bastante considerável acabam por necessitar de cuidados e vigilância 24h, e isto não faz deles menos humanos ou menos dignos de direitos.
Apelar para a dependência do feto em relação à mãe, como vimos, não significa negar sua humanidade e, logo, seus direitos.
A mãe não deve ser obrigada a perpetuar uma situação que viole sua liberdade decidir. Ou pode?
Este é um dos apelos mais utilizados pelos pró-aborto. Sem dúvida, um apelo sentimental eficaz: imaginem como deve ser desgastante psicologicamente sustentar a gravidez e todos os seus efeitos biológicos indesejados (enjôos, vômitos, dores etc). Entretanto, não é um argumento válido para a defesa da justiça do aborto.
Vejam que a mãe e o pai do feto praticam um ato volitivo, ou seja, livre e consciente, qual seja, transar. Como é largamente sabido - e possível de inferência, quando não se sabe claramente -, transar constitui uma ação de risco muitas vezes: você pode contrair uma doença, por exemplo, e você pode provocar uma gravidez. Seja por negligência dos pais ao não utilizar um método contraceptivo, seja pela pré-determinação de engravidar, ambos estão conscientes - ou têm oportunidade de inferir - os riscos, bônus e ônus de uma gravidez. E não será possível, ou justo, após a ocorrência da fecundação, argumentar que foi um acidente: ainda que seja um acidente, isso não livrará a responsabilidade dos mesmos sobre seus atos.
Imagine o seguinte caso: um sujeito dirige por uma rua urbana, com presença de pedestres, a velocidade não considerada segura; apesar de realizar pequenas manobras para desviar dos transeuntes, o indivíduo não diminui a velocidade de seu carro e, fatalmente, acaba por colidir em uma senhora que atravessava a rua. Não será possível acusá-lo de desejar, planejar e executar a ação: houve um acidente, uma fatalidade. O indivíduo, porém, não poderá alegar estes fatos para justificar sua fuga do local ou a não-prestação de socorro. Ainda que não estivesse pré-determinado a realizar a conduta, o sujeito foi culpado do ato e isso o torna garantidor da vida do acidentado. Caso haja a morte ou lesões no atropelado, o motorista será obrigado a prestar-lhe a devida indenização ou até ser preso, na medida de sua culpa.
Uma criança ou um feto não pediram para nascer, tampouco possuem algum tipo de culpa no ato. Eles simplesmente foram colocados na situação de risco pelos seus pais, pois é auto-evidente que um ser que não possui autonomia para sobreviver - ou, se possui, no sentido de comer e beber -, não possui discernimento da realidade é um risco iminente à sua própria saúde. E esta é uma característica natural, fundamental, essencial de uma criança ou um feto, não havendo, portanto, como negá-la ou imputar o ônus de sua natureza ao próprio. No instante em que esse sujeito é posto em tal situação de risco, automaticamente o(s) responsável(is) por esta situação torna(m)-se, seu(s) garantidor(res) e a eles será imposto o ônus de cessar (cuidar) ou garantir sua segurança (dar para adoção, v.g.).
Obrigar uma mulher a manter sua gravidez (pois após o parto o bebê poderá ser doado) não difere de obrigar um sujeito a arcar com a responsabilidade de sua ação. É fundamental lembrar que não foi outro senão a mulher (e o homem) que se colocou em situação de risco e a gravidez nada mais é que um efeito colateral possível, previsível e evitável de sua ação. Na verdade, a violência se constitui quando transferimos a responsabilidade da mãe e do pai para o feto ou para a criança, que sequer possui consciência de sua existência, ainda.
E a questão econômica?
Outro dos estandartes dos abortistas é apelar para a situação econômica de muitas mães. Sustentam que pôr uma criança no mundo seria prejudicial à família, já sacrificada, que teria de virar-se em duas para sustentar mais um indivíduo; ainda, seria um ônus para a sociedade, com o crescimento da pobreza; e, por fim, um martírio para a criança, que teria uma vida miserável, de privações, infeliz.
Não bastasse a arrogante presunção de que estes sujeitos são capazes de determinar o que seria felicidade e quem tem direito a ela, é um argumento essencialmente estúpido: os abortos não são privilégio da população pobre, mas muito comum - mais do que se imagina - em famílias com posses. Apelar para um benefício coletivo do aborto é atitude igual à de todos os coletivistas, que jusitificavam mortes, prisões, seqüestros e toda sorte de violência pelo bem comum. É uma vergonha que liberais por vezes recorram a este expediente tão odioso por diversas vezes.
Ainda, não tem qualquer validade universal: se assumimos que a miséria é inversamente proporcional à felicidade e uma razão suficiente para se aniquilar uma vida, seríamos obrigados a estender o raciocínio a toda população pobre. O sujeito que faz uso deste expediente deve, sem vergonha e sob pena de contradição, defender o extermínio dos mendigos, dos pobres, dos marginais, dos abandonados. Seria uma medida infalível contra pobreza, além de, segundo o raciocínio desses "progressistas", a receita para a felicidade geral da nação.
Pessoas morrem pela ilegalidade do aborto? E a facilidade em praticá-lo?
Talvez este seja o argumento mais utilizado e, junto ao apelo econômico, o de menor valor no debate do aborto.
É preciso deixar claro que pessoas não morrem pela ilegalidade do aborto: morrem pela escolha do aborto, afinal, a lei não as obriga a abortar. Seria o mesmo da família de um drogado reclamar de sua morte ao subir o morro para comprar drogas. A morte da abortista é causada pelo método utilizado, muitas vezes arriscado: e isso não muda devido à lei, mas à sua condição financeira de não poder patrocinar um aborto com remédios indicados ou numa dessas clínicas ilegais que atendem clientes de classe média ou alta.
Quanto à facilidade e o número de abortos, novamente os que defendem esta tese deverão aceitar a legalização do homicídio, do roubo, do seqüestro e das agressões, afinal, ainda que sejam práticas proibidas, ninguém parece dar muita bola e é mais fácil conseguir um revólver para balear um desafeto que ter acesso a medicamentos abortivos.
Enfim, a lei não pode ser um instrumento cultural, punindo ou livrando sujeitos segundo práticas sociais - ou seria perfeitamente legal o apedrejamento de adúlteras em determinada região. A lei deve estar, sobretudo, a serviço da justiça, que é universal.
Como tratar os casos de estupro?
É o ponto mais delicado e de maior problema para os que, como eu, são pró-vida, contra a violência do aborto.
O estupro é uma quebra da previsibilidade de uma relação sexual normal. Não é consentido, constituindo uma violência contra mulher, que, desarmada, não tem qualquer vontade ou responsabilidade pelo ato: ela, primeiramente, é posta em posição de risco.
Este é o caso, admito, em que vejo como ética a retirada do feto por decisão da mãe. Explico.
Ao passo em que, numa relação sexual normal que resulta em gravidez, há culpa ou ação pré-determinada dos sujeitos envolvidos, no estupro há somente a vontade e a ação do criminoso. O feto, da mesma forma, foi posto em uma situação de risco. Entretanto, não há a quem imputar a responsabilidade de sua existência. Sua mãe não foi culpada ou estava pré-determinada a gerá-lo e, logo, não pode ser obrigada a arcar com os custos (monetários e genéricos) de sua existência.
Voltemos à questão do motorista: imaginemos que o sujeito, no caso, dirige de maneira responsável, numa velocidade segura e respeitando todas as normas gerais para não causar qualquer acidente. De repente, a senhora é lançada em frente a seu carro, e ele, sem poder de reação, acaba por atropelá-la. Não haverá, na situação ilustrada qualquer dever inerente ao motorista de socorrer ou indenizar a vítima, afinal, ele não deu causa à situação concretizada: não era previsível, sequer para o mais sábio e mais precavido dos homens evitar o acidente. Ajudar ou não a senhora que clama por sua vida é uma questão moral.
E assim se faz o caso de estupros: não podemos obrigar a mulher a levar adiante uma gestação que lhe foi imposta, mas trata-se de uma situação que lhe foi imposta. Conceder a vida a um sujeito incapaz e também inocente será uma decisão moral da grávida, mas não ética.
Conclusões
Parece-me claro que, analisados os argumentos pró-aborto de maneira um pouco aprofundada, nenhum deles consegue sobreviver ao encontro de normas racionais e éticas. Muitos, aliás, sequer chegam a esse ponto: perecem pelo próprio absurdo contido em si mesmas, como a questão econômica ou cultural.
O que mais me surpreende é o fato da miséria a que é levado o homem quando se passa a enxergar o aborto como mais um meio para buscar a felicidade, o conforto, num mundo livre de responsabilidades. É extremamente angustiante observar que os mesmos sujeitos dispostos a sacramentar direitos de animais, árvores e toda sorte de animais e outras formas biológicas de vida possuem tanto desprezo pela vida humana, em prol de uma falsa liberdade.
Como disse certa vez um jornalista, estamos numa época em que não se garante aos bebês o mesmo direito e proteção concedido aos ovos de tartaruga e jacaré.