Apesar do texto abaixo não ter qualquer relação com o assunto que acabou estourando na última semana pelo noticiário tupiniquim, talvez seja interessante aproveitar o "clima" para fazer minhas considerações sobre o caso.
Trata-se do caso da menina de 9 anos, grávida de gêmeos em decorrência de um estupro praticado por seu padastro. Com os noticiários correndo o país, tudo seguiu o seu rumo normal: entidades abortistas tomaram carona na dor da família para fazer proselitismo, políticos progressistas utilizaram o caso para arrebatar mais alguns minutos de fama para seus projetos e a Igreja Católica defendeu que a vida é sagrada e nem mesmo um caso dessa maneira serve de pretexto para um aborto.
O que se seguiu dessa última reação normal ao caso serviu para desmistificar a tese de que a Igreja Católica possui a simpatia da "mídia conservadora"; aliás, serviu para fazer ruir todo e qualquer discurso da "mídia reacionária", tão denunciada pelas esquerdas: todos os jornais e canais travaram uma disputa para ver quem atacava mais duramente, mais inconseqüentemente a Igreja.
Diversos intelectuais, médicos, "especialistas" de toda a sorte foram convidados a expor suas opiniões sobre o tema - que, como não podia deixa de ser, eram contrárias à Igreja. Durante uma semana inteira, telejornais de todos os horários reservavam um espaço do noticiário para demonstrar a "repercussão internacional" da atitude da Igreja. Do outro lado, somente holofotes para a conduta do Arcebispo de Olinda e Recife, dom José Cardoso Sobrinho. Obviamente, o fato de não entrevistas médicos, intelectuais e outros que apoiavam a decisão da Igreja Católica não foi acidental: a estratégia era isolar o Arcebispo e fazê-lo parecer retrógrado, esclerosado e insensível à dor da família.
Muitos se esforçaram no quesito imbecilidade, mas acredito que Kennedy Alencar, colunista da Folha, tenha ganhado de Arnaldo Jabour - campeão histórico - por alguns centímetros de diferença.
Em sua coluna de sábado passado, dia 7, Kennedy toca em todos os pontos-comuns de críticas à Igreja; exercita todo seu progressismo e ainda sugere como a Igreja deve se portar. Vocês sabem como é: certas pessoas pensam que instituições com 2.000 anos de vida ainda não aprenderam a se adaptar aos "novos tempos", não aprenderam a renovar sua mensagem e suas práticas, daí a necessidade de serem aconselhadas por intelectuais do peso de Kennedy Alencar.
Analisemos.
Os dogmas da Igreja e a postura dos fiéis
Logo no início de seu texto, afirma Kennedy Alencar que "como toda instituição viva, seus dogmas merecem contestação de quem pertence aos seus quadros, de quem já pertenceu e de que não pertence".
De cara, Kennedy Alencar já aplica um golpe em seus leitores: sob as vestes da liberdade de expressão, tenta imputar a Igreja a obrigação de questionar os motivos pelos quais ela é, vejam só!, a Igreja! Obviamente, o que Kennedy Alencar pretende não é defender a liberdade de opinião: isso já existe e é latente; inclusive, após os movimentos até questionáveis da Igreja rumo ao ecumenismo pós-Concílio Vaticano II, não há qualquer indivíduo sensato capaz de acusar a Igreja de restrições impostas à comunidade católica e não-católica em relação aos seus princípios.
Questionar, no sentido de meditar, inquirir, esforçar-se para entender os dogmas da Igreja é um exercício válido e exigível de todo católico, afinal, os dogmas não nos propõem mistérios ininteligíveis. Porém, não é este o sentido de "questionar" intencionado por Kennedy. O que deseja o colunista é discutir a validade e a veracidade dos dogmas católicos. Ora, a Igreja desde os primórdios da sua existência assenta sua autoridade e ensinamento sobre os dogmas de fé; ainda assim, muitos outros foram incorporados à doutrina após centenas de anos de análise por teólogos e filósofos da Igreja - donde não se pode levantar a questão de um fundamentalismo bíblico ou tradicionalista.
O questionar kennedyiano assume a face do confronto, do livre exame pessoal dos dogmas, o que é inaceitável. Ser católico é, antes de tudo, uma escolha individual e livre: ninguém é obrigado a ser católico, mas existe uma livre adesão por parte do sujeito que compactua com seus princípios. E um dos princípios essenciais da Igreja é a obediência às suas normas. Obediência, com a devida vênia, não se trata de aceitar somente aquilo com o que se concorda; antes, é a posição de aceitação passiva daquilo que não se pode alcançar.
O Igreja e o Estado laico
Continua Kennedy Alencar em seus espasmos de genialidade: "os religiosos se julgam no direito de criticar decisões legais, como o aborto de uma criança de 9 anos que foi estuprada. Ora, se podem meter o bedelho nas regras do Estado laico e democrático, podem também ouvir críticas aos seus dogmas".
Pensadores como Kennedy entendem a laicidade do Estado como a negação de Deus ou a veracidade de uma religião, o que é falso. A laicidade do Estado significa que, pelo bem dos indivíduos e para garantias mais firmes de que o Estado não descambará para uma perseguição dos fiéis do credo X ou Y, existe um distanciamento do Estado e de seu aparelho administrativo das questões teológicas. De maneira diferente, o Estado não pode presumir que a Igreja e seus componentes tenham o mesmo afastamento pelo simples motivo de que a Igreja, como todos os indivíduos e associações privadas, está sob o domínio do Estado, mas não o contrário. A opinião de um bispo tem o mesmo peso da opinião de um líder sindical, por exemplo, porque representa uma quantidade imensa de pessoas, mobilizadas por uma caraterística comum, qual seja, no caso, a adoção da moral e dos valores cristãos.
Desse modo, a Igreja tem total liberdade e legitimidade para se expressar, criticar o Estado e, ainda, utilizar o aparato estatal buscando a justiça, da maneira que lhe aprouver. Não é possível ser coerente quando se afirma que a Igreja tem de se sujeitar ao debate de seus princípios, mas o Estado não pode sofrer a mesma ação. E Kennedy Alencar não é coerente, tampouco honesto: vedar o acesso da Igreja à justiça é uma violência tão grande quanto privar um indigente de obter o amparo da lei, simplesmente porque, em relação ao poder estatal, Igreja e indivíduo não possuem qualquer força comparável, tornando-se meros súditos.
A excomunhão e a liberdade
"Nesse contexto, é absurda a excomunhão dos médicos e da mãe da menina estuprada pelo padrasto".
Inspirado, Kennedy acha que já reuniu argumentos suficientes para chegar à conclusão de que a excomunhão é absurda. Somente por curiosidade, tentemos estabelecer um nexo causal utilizando a lógica kennedyiana: dogmas devem ser confrontados e o estado é laico, logo, a excomunhão é absurda. Vejam que rigor racional! Descartes sentiria-se envergonhado ao lado de Kennedy Alencar.
"Os idiotas da subjetividade vão dizer que é assunto da Igreja Católica e ponto final. (...) Quem é católico que se acomode, e os incomodados que se retirem".
Reafirmo minha posição de que o estupro constitui uma violência contra a mulher, um fato completamente imprevisível que a tira de uma situação de segurança e joga-lhe numa espiral de responsabilidades sem seu consentimento. Por isso, afirmo que a lei não deve vedar-lhe o aborto terapêutico - observadas estritas regras, claro. Por outro lado, permanece com ela a escolha moral; permanece com ela o ônus de optar pelo caminho mais fácil, mais prático. E são essas escolhas que os cristãos são chamados a fazer durante toda sua vida.
Cristo não nos deixa a esperança de um paraíso na terra, apesar de ser possível ao homem construir o amor e perpetuar a paz; antes, é da lei natural que o homem sofra, que diversas tragédias aconteçam sem que haja algum motivo específico e individual para o sofrimento: ao mais perfeito e puro dos homens foi destinado o maior dos sofrimentos. Ainda que o cenário geral seja positivo, o cristão deve fazer escolhas muitas vezes contrárias ao prazer imediato e temporal.
Entretanto, como já mencionado, a opção por Cristo não é uma imposição, mas uma adesão. A partir do momento em que aderimos a uma certa ideologia ou instituição, tornamo-nos moralmente obrigados - por nós mesmos!! - a seguir suas regras, agir de modo a não ferir seus limites. E quando incorremos em um erro e uma falta, não atinigimos a instituição da qual fazemos partes, mas, em primeiro lugar, nossa própria consciência, que foi a responsável pela nossa obrigação de não cometer tais faltas.
A Igreja e a vida
No papel de defensora dos direitos naturais, não seria outra a posição da Igreja senão optar pela vida. Por isso, o desdém de Kennedy Alencar, exposto no trecho "no direito canônico, o aborto é mais grave que o estupro" é injustificável.
Como todo ordenamento normativo, o Código de Direito Canônico tem por objetivo, primordialmente, o reconhecimento de direitos anteriores à sua promulgação, não a fixação de normas posteriores a serem obedecidas. E o reconhecimento da vida como valor sagrado e insuperável no mundo encontra amplo amparo nas escrituras, inclusive no decálogo ("Não matarás") e pelas palavras do Mestre ("Amará o próximo como a ti mesmo").
A defesa da vida humana, em todas as suas formas, sobre todas as coisas é imperativo da atividade da Igreja e dos católicos, daí ser legítimo e justo afirmar que o estupro é um crime menor que o aborto, que o roubo ou o seqüestro também o são. Embora extremamente graves e repugnantes, nenhum deles é tão sério e traz tantas conseqüências para as vítimas e para a ordem social quanto um assassinato.
O objetivo de Kennedy Alencar
Há algum tempo, Kennedy se daria por satisfeito. Mas com a percepção de que toda a mídia está com ele, não há o que temer, não há por que se esconder. Assim, sem qualquer pudor em disfarçar a real intenção de seu artigo, apenas uma singela desfaçatez no início do parágrafo:
"A briga é meio perdida, mas é preciso discutir a ampliação do direito ao aborto num país em que isso é questão de saúde pública. A mulher deve ter o direito de decisão. Legalizar mais amplamente o aborto, com limite até determinado tempo de gestação, não vai obrigar ninguém a tirar filho da barriga".
Pois é, Kennedy. Em mais um arroubo de sua lógica elementar, você nos ensina que a legalização do aborto não obriga a mãe a fazer tal agressão. mesma forma, a legalização do homicídio não obrigará assassinos a matar, tampouco a legalização do roubo nos imputará o dever de expropriar a propriedade alheia - como se já não soubéssemos.
Notas Finais ou A Igreja e o tempo
Segundo o jornalista, "Esse discurso serve a um conservadorismo anacrônico que afasta cada vez mais a Igreja Católica do cotidiano de seus seguidores".
Novamente, a grande autoridade eclesiástica e profundo conhecedor do cristianismo, da Igreja e da história tem grandes conselhos a dar a uma instituição bi-milenar. Kennedy Alencar sugere, então, que a Igreja católica deixe um pouco de lado seu cristianismo para voltar a agregar pessoas.
Não é, para Kennedy, os fiéis que devem se ajustas às normas, princípios e valores da Igreja Católica Apostólica Romana, mas a própria Igreja deve abrir mão do que a faz Igreja para perpetuar-se no poder. Nada surpreendente, afinal, Kennedy somente transporta sua concepção pseudo-gramsciana da política para o campo religioso.
A Igreja prevaleceu sobre o maior império construído pelo homem; a Igreja prevaleceu sobre as distâncias num mundo em que viagens intercontinentais tinham a dificuldade de viagens interplanetárias; a Igreja prevaleceu sobre as duas grandes guerras. Não será mais um período de crise moral que derrubará a Rocha de Cristo.
Boas reflexões pelo blog, Igor.
sol_moras_segabinaze
12 de março de 2009 às 08:26