O problema de ser preguiçoso e ter um blog é que você morre de vontade de escrever mil coisas, mas deixa passar muitos bondes pela dificuldade de se concentrar em escrever.
Um tema sobre o qual eu gostaria de ter escrito alguma coisa faz um bom tempo é a questão dos princípios. Durante algumas discussões no orkut, tentei dar umas pinceladas no assunto, mas nada suficientemente detalhado.
Em boa hora foi quando da leitura do post do Thomas H. Kang em seu blog a respeito da mesma questão, e a conseqüente réplica feita pelo Richard Sylvestre; apesar de um pouco atrasado em relação aos dois, pretendo também fazer meus comentários, mas tomo a licença de tentar resumir as posições.
Thomas é partidário da ética conseqüencialista, optando por relativizar certos princípios em determinadas situações em que sua aplicação traz um mal maior que a postura aprioristicamente tida como ética. O blogueiro apresenta um exemplo rápido, como a mentira em determinados casos.
Posso até afirmar categoricamente que a mentira é sempre algo ruim. O problema é quando a conseqüência de não mentirmos é algo pior do que a própria mentira. Imaginemos a situação em que dizer a verdade resulta na morte de alguém. Embora mentir seja ruim, podemos considerar a morte de alguém muito pior (acho que isso é razoável). Quando a escolha é entre o mal e o mal, recorrer somente a princípios não nos leva a lugar algum.
Thomas H. Kang - Ética e mentiras
Por outro lado, Richard é adepto de uma ética completamente apriorística e absoluta, o que significa que um princípio deve valer para todas as situações envolvendo qualquer pessoal:
Se um princípio é verdadeiro para o homem, está de acordo com a sua natureza, a sua maneira de sobrevivência, então sempre onde tivermos homens envolvidos, ele também será verdadeiro.
Richard Sylvestre - Princípios, Mentiras e Contexto
Acho que, por enquanto, é o suficiente para uma breve exposição da minha posição sobre o assunto.
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É inegável que uma ética absolutamente aplicável, no sentido de exigível em qualquer situação e envolvendo qualquer pessoa, parece-nos algo fora de realidade. É o velho caso de João, que, vendo Carlos prestes a ser assassinado por Valter no quintal de Marcelo, um vizinho extremamente rabugento que proibiu qualquer um de pisar em sua propriedade, titubeia entre ajudar - sem qualquer prejuízo à sua integridade ou de outrem - ou não o ameaçad. Temos que João não tem uma obrigação ética de ajudar B(apenas moral, normalmente), mas tem a obrigação de não invadir o quintal de Marcelo. O grande problema é que, racioalmente, estabelecer fórmulas apriorísticas funciona muito bem, mas, quando passamos à realidade, diversas situações imprevisíveis fazem a tão-falada fórmula parecer inadequada ou absurda. Num exercício breve de imaginação, convido o interlocutor a imaginar uma sociedade em que um sujeito, podendo fazê-lo sem qualquer prejuízo, deixa que outro morra injustamente pelo respeito a um imóvel. Não importa o tempo ou lugar, dificilmente assimilamos que uma conduta dessa seria tida como normal ou respeitável.
Ainda no exemplo, temos um claro conflito de princípios, que podemos identificar no seguinte: um mandamento moral não pode ser superior a um mandamento ético. Por exemplo, o mandamento moral de ajudar pessoas não pode resultar num desrespeito à propriedade privada, por exemplo, promovendo uma reforma agrária que revogue a propriedade legítima de terra para assentar famílias agricultoras. Entretanto, me parece que a situação é completamente inversa quando jogamos na "fórmula" o caractere 'vida' e o caractere 'jardim', portanto, a situação anterior não é semelhante ao caso em que, o mandamento moral "preservar a vida de outrem" se confronta com o mandamento ético "não pisar na grama do vizinho".
Não cumpre também assumir como válida a argumentação de que, se podemos revogar tal mandamento ético em favor de uma proposição moral, logo, poderemos revogar todos os mandamentos éticos em favor de mandamentos morais. É necessário observar que à mente humana não é possível trabalhar exclusivamente com proposições objetivas: as variáveis que compõem as "fórmulas" que guiam suas ações são indispensáveis.
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Nesse momento, acho oportuno destacar um trecho do texto do Richard não muito feliz, a meu ver.
(...) um nazista “bate” a sua porta, depois de revistar a casa e não achar nada, faz a derradeira tentativa e pergunta para você se tem algum judeu escondido na casa. Você, um seguidor da ética “mentir é errado”, diz ao nazista: olha, eu sei que você vai matar todos eles e isso é condenável mas eu não posso mentir, sim, eu escondi cinco judeus no porão de casa. Mentir aqui teria conseqüências muito melhores na opinião de todo mundo (inclusive na minha). Mas isso significa que o principio “mentir é errado” está errado? Quem no fundo está mentindo?
Toda ação do nazista é baseada em erro (ou mentira, se o sujeito não acredita nos “ideais nazistas”). Se você revelasse onde o judeu estava, a ação correspondente a isso seria errada, pois seria baseado em um erro (ou mentira). O que você faz ao mentir neste caso é restabelecer parcialmente (pelo menos naquele momento) um pouco da verdade. A mentira só trouxe boas conseqüências devido a isso, se evita que um ser humano seja tratado como o que ele não é, um inseto, uma praga (essa é a verdade restabelecida – um ser humano não é um inseto ou uma praga). Você, levando em conta todo o contexto envolvido, tratou um ser humano como um ser humano, não negou a realidade, sabendo que um ser humano é um ser humano você não agiu como se ele fosse um inseto, uma praga a ser exterminada, você não mentiu, agiu de acordo com a realidade.
(...)
Quem, no exemplo do nazista, negou a realidade e baseou todas as suas ações nessa negação? O nazista (se foi um erro ou uma mentira, dentro das definições que eu coloquei, depende da ciência do nazista sobre o erro). Se você corroborasse com a ação do nazista, sabendo que tudo aquilo estava errado (e você sabia), estaria mentindo. Você não fez isso. Você agiu com a verdade ao seu lado, com o “apoio da razão”, da realidade.
Discordo da argumentação do Richard de que, ao negar ao nazista que não exista algum judeu na casa, o sujeito esteja escapando ao princípio (hipoteticamente absoluto nesse parágrafo) de "não mentir". Ora, não importa o que o nazista e o sujeito pensem sobre o assunto, 'mentir' e 'judeu' são dados objetivos: o primeiro, trata daquele que intencionalmente nega um dado da realidade; o segundo, é aquele que professa a fé judaica. Não aceito a tese de que, quando um nazista bateu à porta do sujeito, poderíamos substituir a pergunta feita pelo "existe algum lixo humano pronto a ser liquidado escondido aí?". Pensemos também que o indivíduo não tivesse uma completa noção da idéia que os nazistas fazem dos judeus. Seria o caso de replicar "depende do que o senhor entende por judeu". Na certa, o coitado seria fuzilado junto.
De qualquer maneira, podemos utilizar um exemplo diferente para demonstrar que a validade da tese do Richard é, no mínimo, duvidosa: imagine que, um pai extremamente conservador, descobre, sem a ciência de sua filha, de que esta está gravida e sofre um infarto, falecendo; ocorre que a filha possui sérios problemas de depressão e um histórico grande de tentativas de suicídio - saber que seu pai morreu de 'desgosto' por sua culpa seria um potencialíssimo motivo para, enfm, dar cabo de sua vida; sabendo disso, ao ser inquirida pela filha sobre a causa da morte de seu pai, a mãe informa que sofreu um AVC enquanto dormia. Ora, a filha, quando perguntou, não tinha em sua mente nenhuma análise equivocada da realidade, tampouco sua mãe reestabeleceu algum tipo de ordem ou verdade com sua resposta. Em comum com a situação apresentada pelo blogueiro, somente o fato de que uma negou um dado da realidade intencionalmente e a outra agiu de maneira diferente por esta informação. É situação semelhante a declarar ao FISCO ganhos de R$ 5.000,00 enquanto seus ganhos reais foram de R$ 50.000,00, ou dizer a outrem que me chamo Cláudio, ao invés de Igor.
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É de bom tom assumir que minha posição se assemelha ao do Thomas, embora eu acredite que uma ética exclusivamente conseqüencialista é extremamente perigosa, fixando um marco muito impreciso entre o que é absoluto e o que é relativo. Vejo, além disso, um subjetivismo tremendo em que seja uma conseqüência benéfica e uma conseqüência maléfica numa ação, trazendo variações históricas e conjunturais à ética.
Ainda assim, não se trata de estabelecer em antagonismo uma ética de pretensa completa racionalidade. A própria razão, enquanto entendida como operação lógica não funciona sem outros aparatos, como os valores. Não há problemas em exigir que uma ética atenda à universalidade - no sentido de ser aplicável a todos os homens -, mas deve-se pensar numa ética que trate da generalidade, ou seja, de situações comuns, ordinárias. Princípios encerram em suas proposições imperativos gerais, norteadores da ação, mas não definidores da ação, simplesmente porque não é possível encontrar no mandamento "não matar" caracteres suficientes para guiar todas as situações possíveis em que seja aceitável e justificável matar alguém; da mesma forma, "não mentir" ou "não agredir" são apenas imperativos que tratam da maioria absoluta dos casos. Em situações-limite, em situações excepcionais, mentir e agredir, não somente são ações que trazem benefícios maior, mas são também necessárias.
Reduzir o comportamento humano a leis fundamentais e mandamentos objetivos é contrário à própria tendência humana de resolver problemas, criar soluções, inovar; antagonicamente, atender a um arcabouço ético sem princípios, sem direção, em compasso com o momento não promove violência menor, destituindo do homem sua capacidade lógica. Em suma, a opção deliberada por apenas um dos dois modelos - ou a ética puramente racional, ou a ética puramente conseqüencialista - que não me parece ser o caso nem do Richard, nem do Thomas, é negar não só a possibilidade de uma ética aplicável, mas optar por negar os traços que fazem do homem, homem.
Gostei do texto....
Talvez eu poste algo no fds comentando no meu blog. Tô meio cheio de coisas p/ fazer no trabalho e na facu...
Richard
17 de setembro de 2008 às 16:27Opa,
Belo texto. Acho sua posição bastante razoável e não chega a ser contrária a minha. De fato, pode-se dizer que minha posição é conseqüencialista, mas não é um conseqüencialismo que ignora completamente princípios.
Gostei do "norteador" ao invés do "definidor". A ética deve ser aplicada ao caso concreto, a ação não pode ser definida abstratamente. Pelo menos é o que penso.
Thomas H. Kang
30 de setembro de 2008 às 16:35