Não. Esta não é uma resenha crítica, sugestão ou menção do famosíssimo livro de Milton Friedman. Trata-se, mais uma vez, de um assunto levantado aqui, pelo dono da comunidade e responsável pelo excelente IMB – Instituto Mises Brasil, Hélio Beltrão.
Em comentário ao texto escrito pelo Joel, do blog Tavista (recomendadíssimo), Hélio sugere uma forma de governo em que os cidadãos escolheriam se adeririam aos serviços prestados pelo Estado. Por exemplo, aquele que optasse por pagar impostos, o faria sabendo que seu dinheiro seria utilizado para o custeio da saúde para os menos favorecidos, por exemplo. No caso, o Estado não passaria de uma organização comunitária, competindo em pé de igualdade com os outros grupos privados que ofereceriam o mesmo serviço. Não seria difícil para um liberal, portanto, imaginar quão rápido essa organização sucumbiria frente à eficácia de um serviço privado.
A idéia do Hélio é interessantíssima e desmistificaria de uma vez por todas a história dos “bens públicos”, ou da primazia do interesse público sobre o interesse privado. As empresas prestariam mais, melhor e mais barato o mesmo serviço, assim como ocorre com um plano de saúde ou com um banco, por exemplo. Até longe, a proposta do Hélio é válida. Ora, se desejo que meu dinheiro seja investido em estradas asfaltadas para aqueles que não podem custeá-la, isso é válido; da mesma forma, não devo ser obrigado a custear a educação mal-dada de milhões de crianças país afora. Previdência privada, bancos, saneamento básico, iluminação pública, coleta de lixo, educação, segurança… Segurança?
De fato, não há qualquer argumento racionalmente válido contra a contratação de seguranças e serviços de vigilância privados, claro. Mas todos hão de concordar que a atividade de mantenimento da ordem pressupõe a existência de alguma ordem e é aí que o raciocínio do Hélio falhará: a ordem, em essência, constitui mandamentos aprioristicamente éticos. Quando uma lei é cumprida(ou, anteriormente, posta em vigor), há a pressuposição de que esta é justa, exigível e universalmente aplicável – na verdade, esses são os pilares de qualquer sistema ético.
O problema ocorre quando existe a possibilida de não se optar pela ética. Ora, eu posso muito bem me recusar a custear a iluminação pública de bairros pobres, mas não posso optar por não seguir um mandamento ético; não posso optar por não matar, não posso optar por não roubar, não posso optar por não agredir alguém. E é esse o risco que corremos ao permitir que sujeitos contratem empresas de segurança: há o enorme risco destas mesmas empresas de seguranças instituirem ou aderirem a ordenamentos pouco éticos ou até mesmo não-éticos. É o caso de empresas especializadas em proteger sujeitos que cometeram homicídios ou outras transgressões – a exemplo do que ocorre em escritórios de advogados especializados em defender criminosos.
A argumentação de que um grupo como esses sucumbiria pelas forças do mercado não procede: uma empresa destas atenderia, por um alto custo e por alto lucro, uma pequena parcela de consumidores; como o conflito entre empresas de segurança seria prejudicial às duas envolvidas, haveria transações judiciais de maneira a encerrar amigavelmente o litígio. Mas, será que as medidas seriam duras o suficiente para punir o transgressor? Não, a meu ver, ou a empresa não serviria de nada ao seu cliente.
Na verdade, esta fuga ao tema foi para comentar somente um aspecto dessa abertura de mercado. O aspecto mais perigoso está, de fato, na construção de diversos sistemas pretensamente éticos concorrendo entre si, como ocorre hoje nas diferentes legislações do mundo. Mas o que há de tão bom num sistema ético estatal, público?
A resposta para essa pergunta serve, também, de resposta à proposta do Joel: somente foi possível haver avanços no estabelecimento e consolidação de normas justas porque a construção de um sistema ético está aberto a todo e qualquer cidadão de um país. Uma das maiores virtudes do regime democrático é possibilitar a cada cidadão fazer ou formular uma contribuição ao sistema a que é submetido e submete seus concidadãos – o que dificilmente ocorreria num sistema totalmente privado.
As imensas deficiências existentes no ordenamento de países democráticos hoje não é um argumento válido à derrubada desse modelo: grupos gays, num ambiente de livre-mercado, provavelmente estariam submetidos a uma legislação em que fosse permitida a união legal indivíduos do mesmo sexo e tal direito seria protegido por alguma agência de segurança. Entretanto, no mesmo sentido, um grupo de skinheads poderia organizar ou contratar uma agência de segurança para que este tipo de direito não fosse permitido a outrem. Imaginemos que, não descambando o conflito para um enfrentamento armado, fosse chamado um juiz ou qualquer terceiro para resolver a situação. Ora, a que fundamento ético iria este sujeito apelar se admite-se a livre associação a qualquer sistema ético, uma ordem legal ao gosto do freguês? Como argumentaria esse terceiro para um skinhead que homossexuais devem ser livres para unir-se, afinal, se ao apelar a esse argumento o juiz presume um mandamento ético universalmente aplicável? Se admite-se a existência de pelo menos UM mandamento ético universalmente aplicável, pode haver outros. E, se há mandamentos éticos universalmente aplicáveis, por que deve ser facultado alguém optar por eles ou não? Analisado sob este prisma, fica insustentável, para mim, a argumentação de que uma ordem livre (em todos os sentidos) reflete o máximo da liberdade humana.
Na verdade, a liberdade de escolher, ironicamente, passa essencialmente pelo cerceamento da opção de aderir ou não à verdade, à justiça.